Trata da garantia constitucional do direito de greve dos servidores públicos civis do Poder Judiciário, seus fundamentos, competência para julgamento da legalidade ou não do movimento, bem como demonstra e comenta o entendimento do STF a esse respeito.
O direito de greve é garantido pela Constituição Federal do Brasil, através do seu artigo 9º, sendo um direito social de todo e qualquer trabalhador, cabendo aos próprios trabalhadores exercerem a oportunidade desse direito, bem como definirem os interesses que serão defendidos pela greve. É incumbência da lei definir quais serão os serviços essenciais e dispor sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da sociedade.
Para os servidores públicos, o direito de greve também é garantido pela Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 37, inciso VII, que trata dos princípios e disposições gerais que norteiam a Administração Pública, em atenção ao princípio da isonomia, consagrado em seu artigo 5º, já que todos são iguais perante a lei e, se o direito de greve foi assegurado para a categoria de trabalhadores, fundamento não há para suprimi-lo da máquina pública.
A lei que regulamentou o direito de greve dos trabalhadores foi a lei 7783/89. A respeito dos servidores públicos civis, o direito de greve ainda carece de regulamentação por lei, mas o Supremo Tribunal Federal, a partir dos precedentes decididos nos Mandados de Injunção nº's 670/ES, 708/DF e 712/PA, firmou entendimento pacífico de que o direito de greve tem aplicação imediata, devendo ser norteado pela lei 7783/89 até a edição de lei própria, regulamentadora do artigo 37, inciso VII, da Constituição Federal.
Para facilitar a edição da referida norma, foi inclusive editada a emenda constitucional nº 19/98, que modificou o processo legislativo para a elaboração da norma regulamentadora da greve dos servidores públicos civis, que ao invés de ser lei complementar que exige quorumde maioria absoluta (maioria dos membros) passou a ser lei ordinária que exige quorum de maioria simples (maioria dos presentes à seção), simplificando a votação, mas de nada adiantou, não havendo outra alternativa a não ser a regulamentação normativa pelo próprio STF para dar eficácia ao direito.
A esse respeito, eis o que decidiu recentemente o Supremo Tribunal Federal:
EMENTA: 1. Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Parágrafo único do art. 1º do Decreto estadual n.° 1.807, publicado no Diário Oficial do Estado de Alagoas de 26 de março de 2004. 3. Determinação de imediata exoneração de servidor público em estágio probatório, caso seja confirmada sua participação em paralisação do serviço a título de greve. 4. Alegada ofensa do direito de greve dos servidores públicos (art. 37, VII) e das garantias do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV). 5. Inconstitucionalidade. 6. O Supremo Tribunal Federal, nos termos dos Mandados de Injunção n.º's 670/ES, 708/DF e 712/PA, já manifestou o entendimento no sentido da eficácia imediata do direito constitucional de greve dos servidores públicos, a ser exercício por meio da aplicação da Lei n.º 7.783/89, até que sobrevenha lei específica para regulamentar a questão. 7. Decreto estadual que viola a Constituição Federal, por (a) considerar o exercício não abusivo do direito constitucional de greve como fato desabonador da conduta do servidor público e por (b) criar distinção de tratamento a servidores públicos estáveis e não estáveis em razão do exercício do direito de greve. 8. Ação julgada procedente. (ADI 3235, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES (art. 38, II, RISTF), Tribunal Pleno, julgado em 04/02/2010, DJe-045 DIVULG 11-03-2010 PUBLIC 12-03-2010 EMENT VOL-02393-01 PP-00153) grifo nosso.
Como se verifica nos mandados de injunção de nº's 232, 283, 284, 543, 562 e 679, predominou, por muito tempo, no STF, a teoria não-concretista, segundo a qual o mandado de injunção apenas constituiria em mora o Poder competente para editar a lei, não podendo a decisão judicial suprir tal omissão, sob pena de afrontar o princípio da separação dos três poderes insculpido no artigo 2º da Constituição Federal. Assim, o mandado de injunção não seria sucedâneo de ensejar ao Poder Judiciário a função legislativa, institucionalmente estranha aos tribunais.
Posteriormente, os precedentes contidos nos Mandados de Injunção nº's 670/ES, 708/DF e 712/PA trataram da greve do servidor público, tendo o STF reconhecido a omissão por parte do Poder Legislativo como inconstitucional, tendo em vista que já se passaram vários anos da edição do dispositivo constitucional nº 37, inciso VII, sem que houvesse qualquer manifestação positiva do Poder Legislativo para adimplir a obrigação que lhe foi imposta pela Constituição Federal, inclusive, através dos mandados de injunção anteriormente citados, o STF fixou prazo para o suprimento da omissão legislativa, sem êxito.
E, somente a partir do julgamento desses mandados de injunção, em 2007, é que a jurisprudência do STF permitiu ao mandado de injunção uma eficácia mais abrangente, na medida em que a decisão judicial, em sede desse instituto, poderia trazer soluções normativas para garantir uma proteção efetiva ao impetrante, como a aplicação temporária da lei 7783/89, enquanto não for editada a lei específica que regulamente a greve dos servidores públicos civis, adotando a teoria concretista-geral, segundo a qual o Poder Judiciário deve regular a omissão com efeito erga omnes.
Merecem aplausos as decisões do STF pela evolução, na medida em que deram maior efetividade ao mandado de injunção e ao próprio direito de greve, deixando de lado o caráter inócuo da decisão de apenas declarar a omissão que sempre foi notória, não havendo que se falar em usurpação de competência pelo Poder Judiciário, pois, diante dos vários mandados de injunção a respeito do assunto, com várias declarações pelo STF de mora por parte do Poder legiferante e respectivas notificações para suprimento, sem sucesso, a omissão também do Poder Judiciário culminaria em obstáculo ao exercício de uma garantia constitucional, quando, na verdade, a função do STF é de guardião da Constituição Federal, tal qual previsto no artigo 102 do referido diploma, devendo sempre zelar pelo seu fiel e adequado cumprimento.
A solução normativa trazida pelo STF não encontra nenhuma vedação expressa pela Constituição ao tratar do Mandado de Injunção em seu artigo 5º, inciso LXXI, tendo ainda como fundamento os artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, através dos quais é lícito ao juiz o uso da analogia quando houver omissão legal, sempre visando o atendimento dos fins sociais e exigências do bem comum, além do artigo 126 do Código de Processo Civil, segundo o qual o juiz não pode deixar de decidir alegando lacuna da lei, devendo sempre recorrer à analogia, usos e costumes e princípios gerais do direito.
Porém, independentemente da mudança de entendimento do STF por meio da adoção da teoria concretista geral com atribuição de solução normativa para o caso, o fato é que o dispositivo constitucional que trata da greve dos servidores públicos civis é nitidamente de eficácia contida, na medida em que possui aplicação direta, imediata, mas não integral, por haver a possibilidade de o legislador infraconstitucional reduzir o seu alcance. Então,enquanto essa lei não for elaborada para reduzir o seu alcance, o direito de greve dos servidores públicos civis poderia ser exercido sem restrições.
Não seria viável tomá-lo por dispositivo de eficácia limitada, pois, como disse o STF no MI 670/ES, não se poderia deixar ao legislador infraconstitucional o arbítrio de conceder ou não o direito de greve aos servidores públicos, já que o seu exercício estaria condicionado à regulamentação por meio de lei, sob pena de tornar inócuo esse direito fundamental.
O direito de greve constitui um direito social, portanto, incluído dentre os direitos fundamentais, que, segundo o § 1º do artigo 5º da Constituição Federal, têm aplicação imediata, atributo das normas de eficácia plena ou de eficácia contida, diferentemente das normas de eficácia limitada que possuem aplicação mediata, sendo assim caracterizadas as normas constitucionais de organização ou estruturação de entidades, órgãos ou instituições, e as normas constitucionais programáticas, caracterizadas como normas que instituem diretrizes e programas ou políticas a serem adotadas pelo Estado (NOVELINO, p. 125/127).
Por outro lado, é importante entender que o serviço público é regido por princípios tratados pelo Direito Administrativo que são inerentes à Administração Pública, dentre eles, o da continuidade da prestação do serviço público, segundo o qual o serviço público deve ser prestado à sociedade sem qualquer interrupção, dada a sua importância para os beneficiários, o que é corroborado pelo artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor, que atribui a continuidade aos serviços públicos essenciais.
A atividade jurisdicional deve ser considerada essencial porque a função primordial do Poder Judiciário é justamente a pacificação social e o consequente equilíbrio das relações jurídico-sociais, através da aplicação da lei pelo Estado-juiz, podendo sua interrupção comprometer a ordem pública e a paz social diante da necessidade de solução de conflitos inadiáveis, inerentes à própria saúde, segurança e liberdade do cidadão, motivo pelo qual a aplicação da lei 7783/89 deve ser de forma mitigada, com ressalvas, e inclusive a lei que vier a ser editada para regulamentar o direito de greve dos servidores públicos civis, em especial os do Poder Judiciário, deve ter um caráter mais específico e rígido nesse sentido, reduzindo o alcance do direito de greve.
O fato de se tratar de serviço público essencial a atividade jurisdicional prestada pelo Poder Judiciário, por si só justifica sua submissão ao princípio da continuidade do serviço público, portanto, o direito de greve dos servidores públicos civis em geral pode ser exercido por ser uma garantia constitucional, mas o serviço público por eles prestado não pode ser integralmente interrompido, devendo sempre se observar o percentual mínimo de servidores que devem se manter trabalhando de forma a prestar um serviço adequado na medida do possível, sob pena de ser a greve considerada ilegal.
Apreciando as decisões prolatadas por alguns Tribunais de Justiça dos Estados no sentido de declarar a ilegalidade da greve dos servidores públicos civis do Poder Judiciário, é possível verificar que os Tribunais de Justiça julgam a greve dos seus próprios funcionários e as decisões são quase sempre pela ilegalidade do movimento.
O julgamento da greve dos seus próprios funcionários pelos Tribunais tem fundamento no MI 670/ES, através do qual o STF orienta que, “... Para o caso da jurisdição no contexto estadual ou municipal, se a controvérsia estiver adstrita a uma unidade da federação, a competência será do respectivo Tribunal de Justiça (também por aplicação analógica do art. 6o da Lei no 7.701/1988) ...”
Ora, o artigo 102, inciso I, alínea “n” da Constituição Federal atribui como competência originária do Supremo Tribunal Federal aquelas ações em que todos os membros da magistratura sejam direta ou indiretamente interessados, o que evidentemente ocorre com os juízes e desembargadores do Tribunal que julgam a greve dos seus próprios servidores, já que, para eles, é mais conveniente que os servidores voltem ao trabalho e mantenham as estatísticas elevadas, sem comprometimento do orçamento por conta dos aumentos remuneratórios que seriam concedidos caso a greve fosse declarada legal.
Questões relativas à formalidade do movimento grevista à parte, o fato é que alguns Tribunais de Justiça não estão preparados para julgar a greve dos seus próprios servidores, na medida em que sempre encontram motivos para declarar a ilegalidade da greve, motivos que, inclusive, podem ser sanados antes de ser proferida qualquer medida liminar. Tal atitude é mais instrumento de repressão com vestígios da ditadura militar, onde não se existia democracia e liberdade de expressão, e muito menos a garantia dos direitos fundamentais, inclusive com a repressão a todo e qualquer movimento que visasse melhoria de condições para a sociedade. Esquece-se que a Constituição Federal é uma constituição cidadã, a qual procurou estabelecer direitos e garantias sociais e individuais e conter os excessos por parte do Poder Público.
A repressão é corroborada pelo entendimento pacífico de que os dias em que o servidor se ausentar por motivo de greve devem ser descontados na folha de pagamento, tendo o STF dito no MI 670/ES que: “Como regra geral, portanto, os salários dos dias de paralisação não deverão ser pagos, salvo no caso em que a greve tenha sido provocada justamente por atraso no pagamento aos servidores públicos civis, ou por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da premissa da suspensão do contrato de trabalho (art. 7o da Lei no 7.783/1989, in fine)”.
O fundamento seria por se tratar, por analogia, de suspensão do contrato de trabalho, hipótese em que cessam temporariamente a prestação do serviço pelo empregado e o pagamento do salário pelo empregador.
Seria mais razoável e tendente a não criar obstáculos ao exercício do direito de greve entender a greve dos servidores públicos civis, a título de regra geral, como uma interrupção do contrato de trabalho, hipótese em que cessa temporariamente a prestação do serviço pelo empregado, porém com a continuidade da percepção da remuneração, sendo o período de interrupção contado como de efetivo serviço, já que o artigo 7º da lei 7783/89 remete ao acordo ou convenção coletiva, laudo arbitral ou decisão da justiça do Trabalho a questão referente às obrigações das partes conflitantes, o que quer dizer que se houver ajuste entre os servidores e o Tribunal ou determinação no sentido de pagar os vencimentos dos servidores durante a greve, o período de paralisação pode, perfeitamente, ser considerado uma interrupção do contrato de trabalho por analogia in bonam partem. (CAIRO Jr., p. 429/431).
O artigo 473 da CLT prevê algumas hipóteses de interrupção do contrato de trabalho, mas o rol é numerus apertus, ou seja, meramente exemplificativo, existindo outras hipóteses previstas em leis esparsas, o que não impede a inserção do movimento grevista nesse rol. (CAIRO Jr., p. 430)
Mas somente quando a situação de insatisfação incide sobre uma determinada categoria é que ela sente a real necessidade e a importância do exercício do direito de greve, pois, como já dizia Rudolf von Ihering, a pacificidade diante das injustiças “ representaria a morte do direito, pois enquanto este só pode se manter por meio de uma resistência denodada contra a injustiça, tal idéia prega uma capitulação covarde dessa injustiça … a resistência contra uma afronta ao nosso direito … constitui um dever …, pois representa um imperativo de autodefesa moral; e representa um dever para com a comunidade, pois só por meio de tal defesa o direito pode realizar-se”. (p.39)
Tanto é que, em 2003, conforme noticiado por diversos sites na internet (jusbrasil), os Juízes estaduais e do Trabalho ameaçaram fazer greve por conta da reforma da previdência que traria reflexos remuneratórios negativos para a categoria. Seria legal essa greve? Os juízes integram a categoria de agente político, portanto, representam o Estado no exercício de sua atividade jurisdicional, aplicando a lei ao caso concreto e pacificando os conflitos sociais. O Estado faz greve? Os juízes têm independência funcional e são inamovíveis e, se em greve, não haveria possibilidade de manutenção do mínimo exigido para a continuidade do serviço público, pois algumas comarcas ficariam sem a prestação desse serviço.
Obviamente, é inconstitucional a greve exercida por qualquer agente político por afrontar a estabilidade da ordem pública, bem como os princípios da razoabilidade e segurança jurídica, já que eles são representantes do Poder em si, motivo pelo qual o legislador constituinte originário sequer previu essa garantia aos agentes políticos em geral.
Logo, não existe lacuna para aplicação por analogia do dispositivo que autoriza a greve dos servidores públicos civis aos agente políticos, notadamente aos juízes, simplesmente porque não era intenção do legislador constituinte originário sua previsão. Também não há margem para uma interpretação extensiva da Constituição Federal para fazer com que o direito de greve dos servidores alcance a categoria de agente político, por ser incompatível com o Estado Democrático de Direito, na medida em que traria a instabilidade de suas instituições, especialmente com o não funcionamento de um Poder da República que é o Poder Judiciário.
A greve dos juízes deveria, inclusive, ganhar status de crime de responsabilidade por meio de lei, aproximando-se da lei 1079/50, na modalidade crimes contra o livre exercício de poderes constitucionais, dispondo-se da seguinte forma: crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo, executivo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados: opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário.
Assim, a greve é uma garantia constitucional do servidor público civil, devendo ser exercida em sua plenitude, sem punições ou restrições quando exercida dentro da legalidade, sendo necessário que haja coerência e boa-fé nas negociações, preservando sempre o princípio da dignidade da pessoa humana em relação aos vencimentos e respectivos aumentos remuneratórios, de forma a capacitar o servidor a sustentar sua família, e ter boas condições de saúde, educação e lazer, acompanhando-se a inflação e, consequentemente, viabilizando sua participação ativa no mercado de consumo, levando-se em conta ainda a enorme carga tributária brasileira que consome, e muito, os rendimentos de qualquer cidadão.
Por Raquel Santos de Santana
REFERÊNCIAS
CAIRO Jr., José. Curso de Direito do Trabalho.3ª edição. Salvador: Editora Jus Podivm, 2009.
IHERING, Rudolf von. A Luta pelo Direito.São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2010.
Para a OAB, greve de juízes é uma agressão à sociedade. Jusbrasil. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/1645060/para-oab-greve-de-juizes-e-uma-agressao-a sociedade>. Acesso em: 14 de maio de 2010.